Covid-19 matou mais do que AVC, infarto e câncer de pulmão no Ceará


As três primeiras mortes por Covid-19 no Ceará foram registradas pela Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) no dia 24 de março. Começava ali um ciclo doloroso e agressivo. Desde então, as perdas são recorrentes e numerosas. Até domingo (10), às 17h15, a pasta registrava 1.114 pessoas mortas no Estado vítimas da doença. Mais de 309 estavam sob investigação. Situações extremas. Processos difíceis. Para se ter dimensão da gravidade do problema, em dois meses, março e abril, a Covid-19 já matou sozinha mais pacientes no Ceará que as causas historicamente mais comuns de óbitos juntas, como infarto, AVC e câncer de pulmão (tipo mais recorrentes de neoplasia). Juntas, as três causas mataram em março e abril 579 pessoas no Estado. Nesse mesmo período, o Ceará teve 705 pacientes mortos por coronavírus.

Os dados analisados pelo Sistema Verdes Mares constam na plataforma IntegraSUS do Governo do Estado. A opção por sistematizar as informações de março e abril e não incluir os indicadores de maio, que nos primeiros nove dias já teve, pelo menos, mais de 409 óbitos por Covid-19, deve-se a limitação da própria plataforma. O IntegraSUS não permite a consulta das mortes por causas gerais por dia, restringindo à disponibilização das informações por mês. Portanto, poderia haver uma imprecisão de períodos caso os dias de maio fossem contabilizados no comparativo entre os indicadores de mortalidade por outras causas e por Covid-19.

O IntegraSUS, plataforma pública da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa), tem, dentre outras informações, os indicadores da mortalidade nos 184 municípios do Ceará nos últimos 10 anos. Conforme dados da plataforma, juntas, as doenças do aparelho circulatório até maio de 2020 foram as que mais mataram pessoas no Ceará nos meses analisados – março e abril. Dentre elas estão: infarto agudo do miocárdio, AVC, hipertensão, insuficiência cardíaca e doenças cardíaca hipertensiva. Somadas, junto a outras enfermidades dentro da mesma categoria (doenças do aparelho circulatório) totalizaram 1.344 mortes nos meses de março e abril. Mas os casos de Covid-19 isolados superam todas as demais causas separadas dessa categoria.

Os óbitos por Covid-19 em março e abril superam as 285 mortes por infarto agudo do miocárdio, as 253 mortes por pneumonia por micro-organismo não especificado, as 180 mortes por AVC e as 114 mortes por câncer dos brônquios e dos pulmões no Ceará nesse mesmo período.

Outra dimensão é que a Covid-19, em dois meses, já matou mais pessoas no Ceará que doenças como câncer de fígado (394 mortes), do pâncreas (372) e do colo do útero (301), edema pulmonar (165), cirrose hepática (366) e HIV (267) ocorridas durante o ano inteiro de 2019 no Estado.

A mortes por coronavírus no Estado podem ser ainda mais numerosas somente nesses dois meses, tendo em vista que há ainda 94 óbitos ocorridos em março e abril em investigação sob suspeita de Covid-19. Em Fortaleza, epicentro da doença no Estado, nesses dois meses, 525 pessoas morreram de coronavírus. A quantidade supera todos os óbitos por câncer de todos os tipos no mesmo período deste ano na Capital. O total de morte por neoplasias diversas foi de 368 pessoas.

Dentre as perdas, está a morte da aposentada Maria Aparecida dos Santos, de 69 anos. Moradora do bairro Papicu, Aparecida contraiu o vírus quando a epidemia ainda estava no início no Ceará. Após oito dias de tratamento em casa, ela careceu de internação. Ficou cerca de 30 dias hospitalizada, conforme conta o filho Felipe Augusto Roseno, e morreu no dia 19 de abril. “Por mais de oito dias fiquei cuidando dela aqui em casa. Os sintomas foram se repetindo. Febre de 38° e 39° graus e começaram a ficar de manhã, de tarde e de noite, foi ficando tudo mais intenso”, relembra Felipe.

Após o dia da internação, Felipe nunca mais viu a mãe. Ela foi hospitalizada em uma unidade particular e, na época, ainda não haviam os gargalos que o sistema de saúde enfrenta hoje. Não se tinha ainda o estrangulamento dos leitos. Embora houvesse a previsão. Aparecida não tinha nenhuma comorbidade, conta Felipe. Ainda assim, a doença avançou. E Felipe que tenta se recuperar da perda lamenta: “ninguém está preparado para perder alguém. Mas perder alguém nas condições que essa doença está levando as pessoas é muito pior. É um ciclo que não se fecha. É como a pessoa desaparecida. Você não viu. Você não sabe nada”.

Estrutura de saúde

Para o presidente da Sociedade Cearense de Infectologia (SCI), médico Guilherme Henn, os índices atuais de mortes por Covid-19 no Ceará têm duas justificativas: a letalidade da doença que é considerada alta por natureza e colapso do sistema de saúde. “Enquanto tínhamos condição de absorver demanda, há três, quatro semanas, um paciente chegava num serviço de saúde, em um hospital privado e ele podia ser internado. Se ele ficasse grave provavelmente existiria leitos de UTI. Estávamos conseguindo levar, mas de umas três a há duas semanas pra cá, a gente entra em uma fase mais complicada. As equipes de saúde estão lutando muito pela vida dos pacientes que estão internados. Enquanto essa luta acontece esse paciente vai ficando 7, 14, 20 dias internado e os pacientes que precisam de internamento, aquele que tinha a indicação relativa, muitas vezes, é mandado para casa e volta já um pouco mais grave. Quando ele volta com indicação plena de internamento, muitas vezes, tem sequer vaga”.

Guilherme explica que já era esperado que os óbitos por Covid-19 suplantassem as outras doenças. Ele acrescenta: “mesmo que tivéssemos condições de atender a todos os óbitos por Covid-19, ainda assim ela suplantaria as demais doenças, porque é uma quantidade enorme de casos em um curto espaço de tempo de uma doença aguda”. Porém, o médico pondera que a taxa de letalidade atual está superestimada no Estado, já que, segundo ele, o número de pessoas contaminadas é maior do que o registrado oficialmente e o cálculo da letalidade leva em consideração os casos confirmados e as mortes registradas.

O médico avalia também que o Governo do Estado e a Prefeitura de Fortaleza se preparam de forma adequada para enfrentar a doença, no entanto, os gargalos estruturais do sistema de saúde ficam evidentes diante da demanda. “Esse problema estrutural resultou do colapso. Por melhor que o Governo e a Prefeitura de Fortaleza tenham se preparado, foi insuficiente. Não tem como absorver a demanda de uma cidade de quase 3 milhões de habitantes”.

Para o infectologista, uma das possibilidades de mudança, passado o momento do pico de casos de coronavírus é a reestruturação do sistema de saúde para emergência pública. Ele reforça que tanto a rede pública como a privada no Estado sempre conviveram com sobrecarga e, para ele, isso evidencia que, de algum modo, a preocupação com essa ausência de estrutura “não era grande o suficiente”.

Foto: Bruno Kelly

Fonte: Diário do Nordeste

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