Corte de verbas ameaça pesquisas no Ceará: ‘a gente perde noite de sono montando projetos’


O olhar fixo aos processos científicos dos pesquisadores cearenses agora se atém a analisar o impacto que a redução orçamentária do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), com valores destinados ao desenvolvimento de pesquisas, terá no Estado. Trabalhos com compromisso de solucionar questões na área da saúde, meio ambiente e da tecnologia, por exemplo, podem se perder sem dinheiro para manutenção de equipamentos e oferta de bolsas.

Deputados e senadores aprovaram o projeto do Ministério da Economia para o redirecionamento de R$ 690 milhões da ciência para outras seis pastas do Governo Federal, na quinta-feira (7). Com o corte orçamentário, de 92%, restam R$ 55 milhões e o prejuízo acontece, principalmente, para o financiamento de bolsas de apoio a pesquisas e projetos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A lei foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro na sexta-feira (15).

O cenário se apresenta como o extremo na redução dos investimentos para o desenvolvimento de estudos científicos. No último ano, as universidades públicas tiveram de se adaptar ao corte de R$ 23,8 milhões, em relação a 2019, para o custeio de bolsas pós-graduação e pesquisa científica no Ceará. O resultado foi a descontinuidade de programas e aumento da escassez de bolsas permanentes, de mestrado, doutorado e pós-doutorado.

“Nós passamos o mês de setembro fazendo inscrições e a gente perde noites de sono montando projetos, discutindo com colegas, convidando pesquisadores até do exterior para participar e aí temos um corte desses?”, questiona Luís Ernesto Bezerra, pesquisador e professor no Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Além da possibilidade de avançar em novas propostas científicas, os pesquisadores temem a perda de estudos em andamento devido à falta de recursos. “Isso representa o descontinuamento de uma série de pesquisas de longo prazo, porque a partir do momento que tem um corte de 92%, isso pode impactar dezenas de pesquisas que estão sendo desenvolvidas e se perde todo o investimento que foi feito anteriormente”.

Luís Ernesto é biólogo por formação, com doutorado em oceanografia, e analisa como grupos do mangue – entre crustáceos, moluscos e plantas herbáceas – atuam na recuperação ambiental no Estado.

“A gente avalia o tanto de carbono que o manguezal consegue retirar da atmosfera, ou seja, amenizando as mudanças climáticas. Esse projeto conta com duas bolsas do CNPq, para duas estudantes de graduação, que realizam trabalhos de conclusão de curso”, detalha.

Com o conhecimento produzido pelo grupo, já foi possível indicar estratégias eficientes de compensação ambiental para a iniciativa pública e privada. “Nós estamos em um ecossistema único, a costa semiárida, então a gente tem de entender como funciona o ambiente onde a chuva é concentrada em apenas uma época do ano”, completa.

O Diário do Nordeste solicitou ao Ministério da Ciência, Tecnologias e Inovações posicionamento sobre a manutenção dos investimentos para as pesquisas no Estado, mas não obteve resposta.

MALABARISMO NAS UNIVERSIDADES

Quem guia estudantes na busca por respostas científicas aprende a fazer “malabarismos” como forma de alcançar os resultados mesmo com o baixo orçamento, define a professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), Rossana Cordeiro. “Alguns projetos de pesquisa, de grande notoriedade, tem financiamento que chegam até R$ 1 milhão de reais – geralmente são de questões emergentes -, mas a grande maioria dos projetos financiados pelo CNPq tem valor baixo, menor do que R$ 100 mil”, detalha.

Ainda assim, são produzidas teses de doutorado, dissertações de mestrado e formação científica para alunos da graduação – além da publicação de artigos em periódicos. “Na prática, as políticas que permitiram a franca universalização do ensino público são muito recentes e mesmo antes dessa época eu não conheço nenhum momento em que tivéssemos vivendo algo tão preocupante”, lamenta sobre os prejuízos coincidirem com o maior acesso ao nível superior.

O que nos causou imensa surpresa foi a forma como o corte aconteceu: praticamente todo o orçamento do CNPq, sem nenhum acordo para mitigação dos danos e a entrega do recurso para outros ministérios, que estão associados a questões eleitoreiras

ROSSANA CORDEIRO

Pesquisadora

Rossana atua na área de microbiologia médica com foco na erradicação de fungos patogênicos. Para entender a especialista explica: existem doenças causadas ou agravadas por fungos e os estudos analisam problemas de saúde leves, como psoríase, até condições graves, como sepse e a fungemia. “Esses patógenos podem ser encontrados de diversas formas durante o processo infeccioso. Nós nos dedicamos ao estudo dos fungos na forma de biofilmes – estruturas com grande resistência aos fármacos disponíveis atualmente”.

A interrupção nos recursos para o próximo ano traz a memória das dificuldades enfrentadas no decorrer da produção científica observada por Rossana. “O papel da mulher como um ser social e produtivo tem sofrido vários retrocessos. Além disso, todos os pesquisadores que estão fora do sudeste percebem que a distribuição de recursos é desigual”, analisa.

Uma amostra da falta de investimentos na ciência está na necessidade de importar insumos que poderiam ser produzidos regionalmente. “Nós temos equipamentos que custam R$ 200 mil reais e não temos R$ 20 mil reais para fazer a manutenção e, portanto, estão parados há dois anos. Então, o corte vai atingir também o parque tecnológico”, exemplifica.

MÃO DE OBRA ESPECIALIZADA

“São os insumos, materiais, equipamentos e, em especial, os recursos humanos, o que faz as pesquisas acontecerem”, resume Joélia Marques, titular da Pró-Reitoria de Pesquisa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). A gestora ressalta que os investimentos na pesquisa científica impactam em toda a cadeia da mão de obra especializada do país.

Joélia observa a relevância da oferta de bolsas e de estrutura moderna para o desenvolvimento de projetos como elementos de transformação positiva para os estudantes. “Quando a gente fala de recursos humanos, eles estão inseridos na formação de profissionais, que muitas vezes têm sua primeira experiência ligada aos ambientes de inovação junto aos laboratórios”, frisa.

Ao longo de 2020, o IFCE recebeu R$ 5,5 milhões a menos do que no ano anterior – quando foram repassados cerca de R$ 8,6 milhões. “Quando vai reduzindo os recursos para a pesquisa, o que acontece é que se perde tudo que foi feito em anos anteriores”, analisa.

A falta de garantia adequada dos repasses também impacta na preservação do ambiente utilizado por professores e estudantes. “Os equipamentos e infraestrutura dos ambientes de pesquisa carecem de manutenção especializada e precisam de recursos de forma contínua”, acrescenta Joélia Marques.

Foto: Arquivo Pessoal / Fonte: Diário do Nordeste

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