Ranchos de romeiros: tradição e persistência


Ano após ano, Juazeiro do Norte abre as suas portas para acolher os mais de 2,5 milhões forasteiros da fé em uma tradição incentivada por Padre Cícero. Quase 100 anos depois do início das romarias, os ranchos comerciais e domésticos continuam a ser a hospedagem preferida da grande massa dos viajantes.





“Era uma aluvião de gente sem tamanho. Juazeiro parecia um caótico mar de pessoas após o ‘milagre’ e essas pessoas, em geral no limite da pobreza, precisavam de algum tipo de abrigo”, relata a historiadora Daniela Medina sobre o início das grandes romarias. Debaixo dos juás, os viajantes abriam suas sacas de arroz, farinha e carne seca. Bebiam água, refrescavam­-se. Recuperavam as energias da longa caminhada na alegria da chegada. Ver o Socorro, o Padrinho, o Juazeiro do Norte… Para todos aqueles homens e mulheres, o Padre Cícero, contrariando o poder público, recomendou acolhimento doméstico. Abram suas casas e seus corações, teria dito, apoiado na bondade cristã.

Os primeiros ranchos foram aquelas casas que abraçaram informalmente o romeiro, oferecendo um quintal para armar uma rede, para abrir uma esteira de palha e para descansar contando histórias de fé. Hoje, segundo Daniela, se fala muito de “hospedagem comunitária”, a exemplo da praticada em Nova Olinda por incentivo da Casa Grande, mas “Juazeiro do Norte já faz isso há quase 100 anos nos quintais das casas”. Com o tempo, os ranchos ganharam ares de negócio e se firmaram como parte importante da economia deixada pelas peregrinações. Hoje, muitos deles são acusados de aproveitar­se da fé alheia para praticar preços abusivos.




UM QUARTO, 15 PESSOAS

Quinze pessoas, um quarto. Duas camas de concreto sob um fino colchão, cinco armadores de rede e um ventilador no teto. R$ 800,00 por cinco noites. Bagagens, caixas, fardos de cajuína e alguns quilos de rapadura e batida disputam espaço com colchonetes. Do lado de fora, no alpendre, 12 redes armadas dificultam a passagem, mas embelezam o cenário com suas cores vivas sob a luz fluorescente.

O líder daquele grupo é Cícero Caetano dos Santos, 55 anos, motorista de van, romeiro desde os oito anos de idade. Enfrentou sete horas de viagem de Belo Jardim, Pernambuco, até o Rancho Engenho Velho, o mesmo onde se hospedava com os pais nas primeiras visitas. Faz esse mesmo caminho três vezes ao ano. E ali, em um dos maiores e mais antigos ranchos de Juazeiro do Norte, Cícero se sente em casa. Ou quase isso. Com a camisa desabotoada, sentado na cadeira de balanço, desfrutando de uma xícara quente de café, conta a felicidade que é chegar na cidade. “É o mesmo que ir pro céu. Parece que meus problemas somem”, assegura. “Não é confortável, você sabe, mas a gente gosta. É como diz a história, a gente vem é para fazer a penitência”.

Tomando fôlego, continua a explicar: “As mulheres dormem nos quartos e os homens nas redes aqui fora. É assim, meio desorganizado, um em cima do outro, mas a gente gosta”. De manhã, as mulheres organizam a merenda e o almoço na cozinha coletiva do rancho. “Não gosto da comida de Juazeiro. É sem tempero! Então preferimos trazer e fazer aqui mesmo”, dispara Maria Lourdes, esposa de Cícero, que reclama por mais ajuda na cozinha. “Na minha primeira romaria junto de Ciço, eu não gostei nada. Me tacar da minha casa até aqui para ser empregada dos outros?”. Mesmo indignada com a falta de solidariedade masculina nos afazeres domésticos coletivos, diz que não conseguiria ficar sem vir a Juazeiro.




“GOSTAM É DE FICAR TUDO JUNTO”

Em uma grande romaria, hospedam-­se nos em torno de 800 a 1.000 pessoas nos 80 quartos que formam o Rancho Engenho Velho e a Pousada São Pedro (são a mesma estrutura, da mesma família, mas com contas separadas). Em teoria, cinco seria o máximo de pessoas por quarto, mas a prática mostra outro cenário. Oito, dez, quinze pessoas se amontoam em redes e colchonetes próprios para baratear a diária. “A gente tenta explicar, mas eles gostam é de ficar tudo junto e eu é que não vou quebrar cabeça com cliente”, assume Eduardo de Oliveira, gerente da Pousada São Pedro.

A oferta varia entre os quartos mais simples, com cama, armadores, ventilador e banheiro comunitário até o padrão “luxo”, com três camas de solteiro, uma de casal, armadores, geladeira e ar­condicionado, fechando em R$ 120,00 a noite. A diária de um quarto comum varia entre R$ 50,00 a R$ 80,00, sendo consenso entre romeiros e observadores que o valor cobrado é extravagante diante da realidade econômica dos viajantes, muitos deles agricultores familiares.

Sem qualquer tipo de acompanhamento ou registro dos hospedados, a esmagadora maioria dos 300 ranchos comerciais cadastrados oficialmente apresentam precárias condições de serviço. Superlotação, baixo nível de higiene, infraestrutura duvidosa e falta de segurança lideram as reclamações. Por anos ignorando a questão, a Secretaria de Turismo e Romaria encara com apatia as denúncias de exploração financeira. E o debate morre na praia, da mesma forma que se abandonou o Centro de Apoio aos Romeiros, investimento que custou R$ 9,5 milhões aos cofres estaduais, idealizado na década de 1980 e entregue à população em 2011, mais de 20 anos depois. O que seria um centro de referência para acolhimento, atendimento e demais serviços aos romeiros, hoje se encontra tal qual um mercado público e aberto, utilizando parte de seu espaço para outros departamentos governamentais. A ideia de um grande rancho público com redários, cozinhas e banheiros comunitários definhou diante das críticas de que este modelo não passaria de mera reprodução da mesma precariedade. Mas há quem defenda: sob um modelo que pesquise e entenda a vivência romeira, um rancho público poderia funcionar.




COMO VOSSOS PAIS

“Eles não vêm até aqui para ter conforto, mas para fazer romaria”, pontua a historiadora Daniela Medina, procurando uma resposta na lógica da prática romeira. Não é viagem, muito menos turismo convencional, mas uma cultura baseada no sacrifício, que descende de aspectos seculares da religião. Da polêmica proibição dos caminhões pau­-de­-arara até a hospedagem precária, o sacrifício é um caminho para se aproximar de Deus e se limpar dos pecados. Para a estudiosa, romaria é um ato de memória. “Os romeiros querem praticá­-la como faziam quando crianças, como aprenderam com os pais, por isso muitos almoçam nos mesmos restaurantes, dormem nos mesmos ranchos e casas”.

A presença de carros nada populares entre os ônibus e caminhões não é assim tão estranha aos rancheiros. Aélida Granjeiro, 65 anos, há dois abriu o Rancho Sagrada Família, na Rua Dr. Floro Bartolomeu, aproveitando uma velha casa sua próxima à Matriz. Ela relata a vinda de muitos viajantes que poderiam bancar a estadia em um hotel, mas que decidem pelas simples pousadas. “Não sei se foi promessa ou se é a penitência, mas que acontece, acontece”, diz. A presença de figuras romeiras de deputados, prefeitos e outras autoridades é mais frequente do que poderiam supor os que costuma relacionar romaria à pobreza.




A PORTA QUE SE ABRE

Não há datação exata de quando se começou a cobrar pela estadia romeira, mas pesquisas históricas e artigos acadêmicos dão indícios de que, já em 1930, pouco antes da morte de Padre Cícero, havia críticas à prática comercial do acolhimento doméstico, ainda que tal não fosse algo generalizado como passaria a ser nos anos 1950, quando ranchos e pousadas começaram a se desenvolver.

Hoje, além dos ranchos organizados como tal, estima­-se que 300 casas se transformam em ranchos familiares nos dias de romaria, principalmente nos bairros Salesianos, Franciscanos, Socorro e nos arredores da Matriz. A metamorfose começa pelos móveis: apenas o essencial permanece. Televisão, geladeira, mesa e armários. O restante é deslocado junto com a família moradora da casa, que se muda para apenas um cômodo, dando assim espaço para as camas, colchões e redes que farão parte das salas e corredores nos próximos dias. A diária, que décadas atrás custava entre R$ 2,00 a R$ 5,00, hoje facilmente chega a R$ 30,00.




Por 38 anos, Josefa Geraldo recebeu “sua família” de romeiros. Para lá de 60 pessoas se ajeitavam como podiam em seu casarão na Rua Santa Luzia. De setembro a janeiro, vinham os parentes de Alagoas, de Pernambuco, de Sergipe. Os amigos de amigos. Os conhecidos de algum lugar que ansiavam ver de perto a “Capital da Fé”. Na rua não passava nada, de tanto caminhão parado. “Cabia todo mundo e era o tanto que chegasse”, Josefa recorda.

Acordava cedo e cozinhava o feijão trazido das plantações. A preparação era cortesia da casa em retribuição à boa companhia. Às vezes recebia R$ 5,00, às vezes não recebia nada. Era o que eles tinham para dar, ela conta, apenas o suficiente para cobrir os gastos com eletricidade e água. “Era um povo tão bom, uma conversa tão boa”, diz ela com a voz fraca. Hoje aos 85 anos, Josefa sente saudades da alegria que a casa tinha nesses períodos de confraternização cristã. “A casa ficava uma bagunça danada, mas aquela misturada de povo alegre me trazia uma felicidade e satisfação tão grande…”, suspira nostálgica.




Por: Alana Maria, Repórter do Cariri Revista
Fonte: http://caririrevista.com.br/ranchos-de-romeiros-tradicao-e-persistencia/

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